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terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Fogo-fátuo e os cordéis de encantamento

adaptado de: lavaggio auto/ roberto cicchine - 10nov2007



Era rua agora. Bisbilhotices em roda de gentes pela casa da comadre. Minha mãe infiltrou-se na residência como um falcão peregrino, fazendo levantar os vestidos atrevidos das vizinhas e a surpresa despeitada dos homens que tumultuavam pelos arredores da casa. Foi então que a estupefação alcançou suas pernas quase cedendo o chão aos joelhos. O desespero enlaçado entre mãe e filho, amplexados em meio à cena aterrorizante.

Eu tinha uns 6 anos, lá no início da década de 60, quando iniciei a minha coleção de histórias de família nordestina. A grande migração para sampa advinha do auge da construção civil. Cada tijolo era um parágrafo dos grandes contos edificados em cimento e ped-aços de grades que começavam a arranhar o céu da minha cidade que já se acinzentava.

Eram de Recife João e Virgínia — paulista que se preza metonimiza torpemente todos os nordestinos a baianos — e, como rochedos à flor da água, abeiraram-se na rua perto da cachoeira, ou seja, próxima a nossa casa. O homem de vincos em torno dos olhos, como se tivesse observado a vida com firmeza aguda, carregava a aspereza da mão que prepara o chão da alma, montando o teto das idéias e erguendo as paredes que direcionam os desejos alheios. Tinha como ofício amassar barro o pedreiro; ela, senhora da casa, arriscava-se às contas e aos pontos que se costuravam em meadas com fios de fábula a alguma vizinha que carecia de fatos.

Nos arrabaldes encontrávamos e desencontrávamos todos nós, que recheávamos qualquer habitação. Um revisor de jornal que ouvia óperas pelo rádio, distribuía balas para a molecada e voltava sem quinhentos réis para casa era o marido da minha tia, que possuía mãos de sempre fada e nunca dor de cabeça. O casal era pai e mãe de uma filha de maria, a prima de voz acanhada por não ter boca pra nada. O irmão da tia era o meu pai, um caçula de outra grande família. Talvez por isso, planejava uma filosofia hippie de vida, caçava rãs e amava futebol, tinha pernas arcadas combinadas a uma boina. Piscou verde para seduzir minha mãe. Bem, esta era a dona das histórias todas. São através dessas veias que nas minhas corre a fibra das mulheres que admiro. O amor fabricou o primogênito que cedeu lugar para a gêmea da minha alma que me viu aparecer roxa de tudo — resto de tacho — confirmando assim as contas brilhantes do terço da parteira. Assim, Maria. Vim metendo o pé no mundo. Aparecida.

Éramos oito pessoas que descendiam de italianos. Isso significava macarronada aos domingos, conversas atropeladas por muitas vozes e gestos expansivos com as mãos. Enfim, transbordantes e calorosos. Quando dei conta, meu povo era amigo do casal baiano...ops, pernambucano.

O tempo, à espreita, testemunhava o primeiro filho de João e Virgínia assim como nós, que nos deparamos com os olhos acesos de quem principia a buscar, a pele fina porque sem corte e a mudez típica de aprendiz. Josias Valci não combinava com o bebê porque quem ouvia o nome e olhava-o, notava que o menino tinha mais letrinhas que corpo. Seus pais tinham, realmente, um gosto engraçado e extravagante. Fui cuidando de perceber que faziam uma combinação, muitas vezes sem sucesso, de nomes compostos que traziam as iniciais J e V.

Bem, Josias foi dado ao primeiro sacramento. A partir daí, meus tios eram padrinhos e ele afilhado. Além disso, entre os adultos, por conta do vínculo, passaram a tratar-se de comadre e compadre. Muito mais pra frente é que entendi porque mudavam de nome depois da festinha na igreja. Piscamos e os anos passavam grandes, como pulando os degraus da vida.

E quando Josias-homem vinha para comemorar o natal conosco, trazia uma garrafa que, na verdade, parecia com o vinho que a gente tomava (bem, eu saboreava-o aguado e com açúcar) e meus tios enchiam a boca com o tal vermute para falar que ganharam um Cinzano de presente do afilhado. Sempre o padrinho brincava chamando o garoto de lampião e era um acanhamento de bochechas avermelhadas que eu nunca entendia. Josias já tinha mais três irmãos, o JV magrelo de mãos compridas e longos cambitos, o JV cabeça mais chata e Julião Veraldo, o pequeno.

Minha mãe poderia ter seguido muitas profissões, porque nasceu com o dom de adubar o mundo. Além de genetriz e professora da criançada toda da rua, tinha uma mão pra tratar dos bichos que só vendo, ainda comprometia-se como uma enfermeira de primeira. Era ela quem tratava do umbigo das crianças e cuidava da comadre durante as gravidezes e depois dos partos.

Tudo se encaminhava à criação dos filhos que já largaram as mamadeiras há um tempo, embora alguns estavam jogando os dentes de leite no telhado e em outros já se via a penugem de uma barba. Às vezes, na minha casa, que ganhava em quantidade e em mulheres, comentávamos dos hábitos diferentes e do carinho que sentíamos por eles.

Vez ou outra Virgínia era visitada por dois irmãos que vinham da mais antiga capital brasileira. Um deles, lembro-me, tinha o nome de Antônio, um galalau que mangava de todo mundo. De índole extrovertida, dizia sempre “avia xodó” e adorava distribuir cheiros por toda parte. Exibia a sanfona que se curvava toda em gemidos de saudade. Tonho, então, cantava pra irmã um forró que acalorava a rua inteira enquanto os outros dois manos ensinavam o pessoal a dançar o bate-coxa.

Nunca deixavam de passar as festas de São João perto dos parentes da terra da garoa e a espera pela chegada deles era de um entusiasmo de levantar defunto. Virgínia espalhava a notícia pela vizinhança e corria para deixar a casa brilhando. Assim, como era o hábito da época, ela, nessa ocasião, cismou de encerar o chão. Evidentemente, porque era muito humilde, na sua dispensa só havia o necessário, não podia dar-se ao luxo de comprar produtos supérfluos com facilidade.

Ainda hoje, angustia-me a recordação dessa cena e do quanto o instante é passível de fatalidades que não se consertam. Em meio ao grande furdunço de vozes e braços e lágrimas do céu paulista, orgulhei-me da coragem de mamãe — foi assim que iniciei minhas concepções acerca da fragilidade humana — ao agir bravamente diante da desastrosa lambida.

Virgínia...bem, com a ingenuidade dos simplórios, na tentativa de que a cera rendesse, procurou derretê-la em lata que ardeu toda de labaredas ágeis em distribuir suas cores. O desespero arremessou a lata ao quintal que vestiu o pequeno. Julião parecia que corria ao encontro de boitatá. Seu corpo inteiro dominava o fogo que mais se matizava em volta de seus olhos de fera enlouquecida.

A dona da casa que aclarava a noite chuvosa, entre tantas outras que banharam a vila durante a semana, ainda tentou afugentar as chamas e urrar pedidos de socorro. Foi quando mamãe chegou com a lucidez dos heróis para rasgar as roupinhas do menino e enrolá-lo num cobertor. Mas fogo-fátuo, vestido de todo o azul, concedeu o reino da luz a Julião, que era brilhante demais e ascendeu. Apesar de encharcar os corações de sua família, desde então lhes guia com sua claridade de eleito.

A comemoração da festa de São João não foi das mais dançantes na rua perto da cachoeira, mas eu olhava a fogueira com tanta fascinação e podia jurar que Julião ria entre uma fagulha e outra, traquinando brasas noite adentro sob o xote que abençoava as pessoas que teciam seus trapos com novos cordéis de encantamento.

21/09/2007


14 comentários:

  1. Que maravilha!
    Beatriz, em seu texto nada falta ou sobra! A leitura desse conto foi em si uma experiência inusitada. Você arrisca na linguagem com talento, o jogo de idéias e ao mesmo tempo a simplicidade da narradora-personagem, tudo casou lindamente. Lembrou-me algumas poesias do Manoel de Barros, pois ele tb gosta de jogar com os significados e associações. Esse lirismo interiorano lembra-me tb o Guimarães Rosa. E a simplicidade, o uso preciso da pausa, lembram-me Clarice. Seriam eles influências?
    Estou fascinada. Parabéns, de verdade!
    Amplexos!

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  2. ah, já sei, vc estava ouvindo o Cordel do fogo encantado e inspirou-se?

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  3. Cara Beatriz, conheci sua escritura pela Revista Confraria do Vento. Gostei do conto de delicadezas e surpresas, das poesias do cotidiano.
    Virei visitá-la outras e vezes e vou lendo tudo de pouco em pouco.
    E comento.
    Estamos combinados.
    Peço permissão para lincar seu blog ao meu: http://walmir.carvalho.zip.net
    Paz e bom humor sempre

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  4. bia vc se destaca neste conto com excelencia, esta é vc.

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  5. olá, escritora! mandando ver, como sempre ;)
    bjuzx

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  6. Prosa muito rica de detalhes. Gostei.

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  7. escreve bem pra caramba, hein!
    parabens mesmo. sempre que tiver algo novo é só mandar

    http://www.peri-doalem.blogspot.com/

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  8. Parabéns, belo texto. Um forte abraço.

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  9. Mana blogueira,
    Feliz Natal.
    Vida longa, fértil, criativa e bem sucedida e este blog.
    Paz e bom humor sempre.
    Walmir
    http://walmir.carvalho.zip.net

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  10. Bia!
    agora que vc me contou a história desse conto, leio e me arrepio.
    Lindo demais.
    é mais emocionante ainda.


    Feliz Natal, querida!
    e olha: tem novidade no Falópio e nas Descontroladas.
    Apareça!
    Um beijo!

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  11. Anônimo1:23 AM

    Estava eu a ler pela internet, apesar de não ter este hábito e encontrei seu blog... com esta bela prosa! Adoro simplicidade misturada com opulência de palavras... parabéns!
    Prometo voltar mais vezes...

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  12. Bea

    Desculpe não ter dado tempo de ler antes. Mas assim, sem comentários né. Quando crescer eu quero escrever igual você.

    Bjo, vc manda muito bem

    Gustavo

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  13. Anônimo6:25 PM

    Uma boa estória pode ser boa como só, mas se lhe faltar ritmo...nada feito...vira só uma outra estória qualquer...profusão de imagens ricas em desfile ritmado...gostei demais!!
    ...já lhe disse antes e, torno a repetir, suas letras são desferidas como golpes potentes que nocauteiam sem dó...
    ...felizes os nocauteados...
    Tenha um 2008 produtivo e feliz!!!
    BJS!!

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