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quarta-feira, 6 de junho de 2007

Metade da luz

Pés em contra-luz
Marcio Murilo Pilot - 08mar2006


Esta estava sendo uma noite tão igual, distanciando-se das outras porque apesar da regularidade da chuva, absteve-se de manter a temperatura, retraindo-se. Tal fenômeno confluía com meu astral resignado e melancólico de noites desesperançadas e eu achei até mais cabível e piedoso da parte do estado de fora de mim. Recordei-me que o ambiente havia se tornado, por isso mais cúmplice, todavia. Talvez até o meu humor tenha se abrandado juntamente com o decorrer malicioso das horas incansáveis como eu. Assim que resolvi quebrar a rotina noturna e preparar-me um banho à meia-luz; logo eu, que mesmo durante o dia tenho o hábito de acender as luzes para assistir à água cair com mais confiança por entre meus pedaços, não nesse momento, obscenos. Então deixei a porta semi-cerrada que produzia uma fresta convidativa (o abajur implorava atenção ao lado da estreita cama de um quarto solitário) e que sugeriria uma falta de privacidade — contudo esse não era um empecilho já que a essa hora e a todas as outras, não há platéia — e também a cena inusitada propunha uma atitude mais lenta e concentrada que reverberasse na sensualidade esquecida de banhos diários. O chuveiro aparentou-me de proporções maiores também porque intermediava gotas frias que teimavam em não esquentar. Quem sabe a fraca iluminação e o imprevisto da hora pesassem para que a água se melindrasse de cair tão cedo. Mas não posso negar que foi aconchegante perceber o toque manso e já morno na minha pele aflita por novos contatos, e o perfume do sabonete contaminando meu faro tão viciado da vida de fora e os movimentos e atritos atentos, o que me causou a sensação de maior limpeza. Talvez tenha me empenhado mais do que deveria neste ato higienizador porque, ao término do banho, senti a fragilidade apoderar-se de mim a tal ponto que não me pude sustentar. Tremi desesperadamente como quando se faz absoluta a plenitude orgástica de um corpo. No entanto, não sentia que estava intacta, a sensação era de falta, como se fora arrastada a matéria por quilômetros na velocidade de um carro desgovernado. Era a alma ralada, era o tempo de agora, era a vida que.

Um comentário:

  1. Conferindo tuas criações...
    Muito bom este conto, linguagem intensa, expressiva, moderna, sem dúvida lembrando a Lispector. Confesso que não é dos estilos que mais aprecio, prefiro teus poemas, mas não se pode negar sua qualidade.

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